Ciganos mantêm tradições no Jd.Silvina
Tiago Dantas
Do Diário do Grande ABC
Um grupo de ciganos vive há oito anos em um acampamento montado às margens da Via Anchieta, no Jardim Silvina, em São Bernardo. Enquanto tentam manter as tradições milenares do povo, eles se adaptam à vida moderna. As tendas, cobertas por lona colorida, abrigam tecidos artesanais e eletrodomésticos novos. As crianças frequentam a escola do bairro, e quase todos os adultos já tiraram seus documentos. Festivo e receptivo, o grupo costuma passar o fim de semana comendo churrasco e ouvindo forró no som do carro.
O Diário visitou o acampamento cigano dia 20, domingo, durante a festa de casamento de Mauro Soares Ferreira e Chiara Bolsanello, ambos de 18 anos. As mulheres usavam vestidos coloridos feitos sob medida por ciganas de outros acampamentos, colares e pingentes. A comemoração só não foi mais alegre porque a comunidade ainda está de luto pela morte do seu líder, Donizete Soares, 58, conhecido como Oripe, há dois meses.
Seguindo a tradição, os integrantes do clã queimaram a tenda onde Oripe vivia, com suas roupas e objetos pessoais dentro. "Os bombeiros chegaram a vir aqui pensando que era incêndio", conta Júlio Soares, 37, genro de Donizete e cotado para ser o novo líder do grupo. Porém, os agentes não apagaram o fogo, em respeito ao costume.
Otelina Mendes, 60, casada com Oripe desde os 10 anos, ficará de luto para sempre: cortou os cabelos e não usará mais roupas coloridas. "Perdi meu velho, minha tenda... tudo", lamenta Otelina.
Comerciantes - A matriarca do grupo passou a morar na casa da filha Vanusa Mendes, 25, e do genro Flávio Mendes, 27, que trabalha, como a maioria dos ciganos, vendendo de tudo um pouco.
"As mulheres leem mão e os homens fazem negócio: de carro, celular, tecido. Não faz parte da tradição cigana ter patrão", explica Flávio. Os ciganos de São Bernardo são da etnia calon, originária do Egito - outro grupo é chamado ron. Mesmo que não se conheçam, eles se identificam por meio de um sinal que fazem com tinta verde no rosto e nos braços e pelo dialeto.
"Nós falamos o chibi de calon, que ensinamos de pai para filho e só é entendido por cigano. Serve para quando vamos negociar alguma coisa", afirma Flávio.
Outra fonte de renda dos calon é o aluguel de casas. Otelina tem um imóvel em Itapetininga, no Sudoeste do Estado, onde o grupo já morou. Os calon do Jardim Silvina têm parentes em Assis e Sorocaba, no Interior, e no Itaim Paulista, Zona Leste da Capital.
O grupo foi parar em São Bernardo por insistência do líder Oripe. "Aqui é bom para ganhar dinheiro", diz Flávio. A permanência da comunidade foi acordada com o dono do terreno.
Casal de noivos foge à regra e se conhece pela internet
Diz a tradição cigana que os casamentos devem ser combinados enquanto os futuros noivos ainda são bebês. "Tentamos fazer com que as crianças se agradem, que se gostem desde pequenas", diz Júlio Soares, 37 anos, um dos integrantes do clã.
Mas nem sempre isso é possível. Um dos filhos de Júlio, por exemplo, Mauro Soares Ferreira, 18, não quis passar o resto da vida com a mulher que era prometida a ele e conheceu a cigana com quem se casou no dia 20 pela internet.
"Casar sem amor não adianta", ensina o pai. "Não sou eu nem minha mulher que vai viver com ela (a noiva). É meu filho", conclui. A prometida, filha de um cunhado de Júlio, não mora no acampamento de São Bernardo.
Após descobrirem que Mauro conhecera a noiva pela internet, Júlio e sua mulher, Joana Soares Ferreira, 33, foram buscar a futura nora em um clã cigano na cidade de Medeiros Neto (BA). Eles enfrentaram uma viagem de dois dias para ir e mais dois para voltar dentro de um ônibus.
Mauro e Chiara Bolsanello, 18, se casaram domingo passado com as bênçãos das duas famílias. "Vamos ficar aqui por um mês e depois vamos para a cidade dela passar um tempo", disse Mauro após a cerimônia.
Casamentos e batizados são celebrados por padre católico
Embora não exista uma religião oficial para todos os ciganos, muitos deles seguem o catolicismo. Os calon que vivem em São Bernardo, por exemplo, batizam seus filhos e casam dentro dos fundamentos da igreja católica.
Para celebrar os sacramentos, nos últimos anos eles contam com o padre Jorge André Pierozan, conhecido como Padre Rocha. O apelido tem pelo menos duas versões. "Deram-me esse nome quando eu jogava futebol, por causa de um atleta da época", diz o padre. "Ele é Rocha porque não deixa os calon na mão. É forte e sempre nos ajuda", opina Júlio Soares, um dos ciganos do acampamento.
Integrante da Pastoral dos Nômades, Padre Rocha se desdobra para conciliar a agenda de sacerdote da Paróquia Santíssima Trindade, no Butantã, Zona Oeste da Capital, e os compromissos nos acampamentos ciganos.
"Quem mora em tenda tem a fé mais forte do que quem mora em palácio. Aqui, eles não têm paredes para se proteger, eles jogam na mão de Deus", afirma.
A ligação do pároco com os ciganos vem da infância, quando foi vizinho de um acampamento e trapezista de circo. "Um dia ainda me aposento e vou morar na tenda também."
Único museu brasileiro da cultura está montado em Santo André
Uma casa de três andares e paredes amarelas na Vila Floresta, em Santo André, é a sede do único museu brasileiro que conta a história do povo cigano. Ao contrário do que possa parecer, o idealizador do espaço cultural não tem nada de calon ou ron. É um publicitário que notou a ausência de espaços que valorizassem a vida cigana.
"Sempre tive vontade de abrir alguma coisa voltada à cultura. Pesquisei bastante e vi que ainda não tinha nada para os ciganos", afirma Marcos Dechechi, diretor e criador do Museu Cigano, inaugurado em 2007.
Na entrada do local, o visitante encontra uma imagem da Santa Sara Kali, ou Sara Negra, considerada a protetora dos ciganos. Para garantir boa sorte, deve-se tocar o sino preso ao batente superior da porta de entrada da casa três vezes. Espalhados pelas paredes, estão dezenas de painéis com fotos e informações históricas.
No último andar do prédio, fica o espaço para aulas de dança cigana, do ventre e flamenco. O Museu Cigano fica na Rua Igaraçu, 147. A entrada custa R$ 5, e o visitante ganha uma caneta. Para pedir informações ou marcar visitas, o interessado pode acessar o site www.museucigano.com.br ou ligar para 4426-6857.
Povo teria saído do Egito e da Índia há cerca de 5.000 anos
Não existem registros históricos oficiais sobre o surgimento do povo cigano. Acredita-se que os primeiros deles saíram do Egito e da Índia para se espalhar pelo mundo há cerca de 5.000 anos.
"O cigano sempre foi um povo perseguido. Mas é o único que se espalhou pelo mundo todo sem entrar em guerra com ninguém. A palavra-chave dele é a liberdade", conta Benedita Rodrigues Dedechi, a Beni Mística, diretora do Museu Cigano de Santo André.
O primeiro cigano a chegar ao País teria sido João Torres, que saiu de Portugal em 1574. Na época, o povo era requisitado por ter facilidade com trabalhos artesanais e manuais. Atualmente, existem cerca de 800 mil ciganos no Brasil, segundo a Pastoral dos Nômades.
Outra tradição cigana é o uso de dentes de ouro por praticamente todos os adultos. O costume surgiu como forma de guardar as riquezas e evitar que elas se perdessem quando as tribos mudassem de lugar.
Os calon que vivem no acampamento do Jardim Silvina, em São Bernardo, dizem que só conhecem um dentista, morador de Suzano (na Grande São Paulo), que faz o serviço.