Cidade em Portugal constrói muro para isolar comunidade de ciganos
Fonte: Opera Mundi
Com portões e buracos, o muro do bairro das Pedreiras, em Portugal, é inútil tanto para proteger as cerca de 50 famílias ciganas que vivem do lado de dentro quanto para segregá-las do restante da cidade de Beja, na região do Alentejo. Ainda assim, tem funcionado como símbolo de ações que estimulam o distanciamento, voluntário ou não, dos membros da etnia no país. Para membros de organizações nacionais e internacionais, como a Anistia Internacional em Portugal e a Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância, os ciganos, embora tenham cidadania portuguesa, são um dos principal alvo de discriminação no país.
O Pedreiras tem seis fileiras de casas de alvenaria geminadas e foi construído em 2006 para abrigar as famílias que ocupavam ilegalmente um terreno público no Bairro da Esperança, área pobre da cidade a 170 km de Lisboa onde vivem ciganos (ou Povo Roma, como preferem ser chamados) e não-ciganos. No local, agora há um empreendimento privado para baixa renda que estagnou por falta de procura.
Vitor Sorano
Joaquim Estrela Marques e portão do muro ao fundo
A remoção – forçada, segundo os moradores – criou uma espécie de gueto. “As pessoas têm vergonha de dizer que moram aqui. Quando digo que moro aqui, falam 'Epa, você mora lá com os ciganos'”, diz António Gomes Luz Vultos, de 51 anos, de uma das duas únicas famílias de não-ciganos. A mulher dele é amiga da vizinha, que é cigana. Para o bispo de Beja, dom António Vitalino Fernandes Dantas, a separação étnica é a fonte dos problemas.
“O fato de ser um bairro de ciganos dificulta a integração. Não é boa prática colocar uma etnia em um bairro segregado”, diz.
Pretextos
Oficialmente, o muro de dois metros de altura e mais de 100 de comprimento foi construído para evitar o atropelamentos das crianças, já que ao lado passa uma autoestrada sem qualquer passagem para pedestre – nem previsão de ser feita, segundo o presidente da Câmara Municipal (em Portugal, equivalente à prefeitura), Jorge Pulido Valente.
Segundo Valente, o muro foi construído de comum acordo entre os moradores, empresas do entorno e a administração municipal. Até o fim do ano, diz, será reformulado para perder o aspecto de paredão e facilitar o acesso. “Muros se constroem, mas também se derrubam”, diz, embora não seja essa a obra prevista.
Apesar de contar com serviços de água, luz, coleta de lixo, esgoto e transporte escolar, o bairro não tem transporte público, escola, posto de saúde, comércio, correios nem áreas verdes. A única estrutura, além das casas, é um contêiner - aberto esporadicamente - que serve para o desenvolvimento de atividades infantis. Boa parte do chão é de terra batida.
Cães, insetos e lama
Localizado em área industrial, a cerca de 2 quilômetros do centro de Beja, o bairro foi construído perto de uma empresa de comércio de produtos agropecuários e do canil municipal – a ser desativado pela Câmara, mas depois cedido a uma associação de proteção dos animais.
Vitor Sorano
A família de José Maria Fonseca enfrenta uma série de dificuldades pela falta de infraestrutura em Beja
“Estamos mesmo fora da cidade. Estamos junto aos cães. Os excrementos dos cães corriam por aqui. Nós é que fizemos uma vala para que passasse pelo outro lado do muro”, diz José Maria Fonseca, de 37 anos, desempregado, como quase todos do bairro.
Na casa dele, uma das que têm móveis, azulejos e piso, há veneno espalhado pelo chão e pela pia da cozinha, para afastar os insetos que infestam as moradias. “Já encontrei ratos sobre meu bebê enquanto ele dormia”, diz Ana Rita Silva Agostinho, de 15 anos. Já Joaquim Estrela Marques, de 95 anos, afirma ter dormido sobre a bancada da cozinha em dia de chuva.
“O barro entra todo por aqui. Quando vi, não quis ficar, mas as autoridades estavam todas aí”, diz.
Outros usam cordas para manter em pé as portas, que às vezes caem. “É um mapa”, diz António Vultos, sobre as rachaduras nos imóveis. A Câmara promete intervenções estruturais no ano que vem e diz já estar fazendo pequenas obras.
Grades
No Bairro dos Moinhos, de classe média e o mais próximo do Pedreiras, a escolha da Câmara resultou, segundo alguns moradores, na colocação de grades sobre os muros baixos das casas e a aquisição de cães de guarda. “Aqui quase ninguém tinha gradeamento e agora há em quase todas as casas”, afirma José Carvalho, de 36 anos, funcionário municipal, que tapou seu quintal depois de um brinquedo do filho ter sido furtado.
Furtos e roubos são atribuídos aos novos vizinhos. “O único caminho para a cidade é por aqui e, quando passam, roubam e quebram coisas”, diz Jorge Malpão, de 26 anos, trabalhador agrícola. “Que não é boa vizinhança, não é. Se houver algo que interesse (no quintal), eles pulam”, diz um idoso que não quis se identificar.
Vitor Sorano
Vista do trailer de Maria do Carmo Ramos a partir de buraco (a partir do exterior)
O presidente da Câmara também liga os ciganos a um aumento de ocorrências leves, sobretudo em grandes superfícies, como supermercados. “As pessoas estão um pouco saturadas de uma predominância da etnia cigana, nos atendimentos nas lojas, no hospital. São algo indisciplinados. Não são todos”.
“Taparam a gente”
Inútil para barrar a criminalidade atribuída genericamente à população do Pedreiras, o muro é condenado por quem se diz vítima dela. Para Malpão, que diz ter sido furtado, “o pessoal não pode desprezar outra etnia. Estão a se sentir como prisioneiros. Talvez se fosse aberto, facilitaria (a integração)”.
“Aquilo não serviu para nada, acho que não faz sentido, aumenta a discriminação”, diz Carvalho.
“Para mim não está bem. Construir 50 casas e colocar um muro em volta parece um curral para porcos ou uma prisão”, diz um não-cigano de cerca de 50 anos que não quis se identificar.
“Atrapalhar não atrapalha, mas envergonha. A gente não consegue ver a cidade, e a cidade não consegue ver a gente”, diz o cigano António Graça, de 34 anos, desempregado, morador do Pedreiras.
“Taparam a gente”, resume Maria do Carmo Ramos, de 75 anos, que mora acampada em um trailer em frente à casa da filha.
Muro invisível
Um portão foi instalado para encurtar o caminho até o centro da cidade. “A gente abria e eles fechavam. Queriam que a gente desse a volta lá por cima”, diz António Vultos, um dos não-ciganos do bairro. Em todos os discursos, porém, a barreira, fica em segundo plano em relação à precariedade das casas e da estrutura urbana do bairro.
Valente também considera esse um problema menor para a integração e aponta para as dificuldades impostas pelos ciganos. A Câmara quer que os moradores assinem contratos de responsabilidade, em que eles se comprometam com o pagamento dos alugueis, a aceitação de propostas de emprego, a manutenção dos filhos na escola e a adoção de “comportamentos cívicos adequados”.
“O muro principal é o invisível. Tem que haver por parte da etnia cigana a assunção dos seus deveres, o que não tem acontecido”.